Esta é uma coluna de opinião da Dra. Paula Yume S. S. Corrêa, graduada em medicina pela USP, especialista em dermatologia e cirurgiã de Mohs pela SBD, além de gestora do seu próprio consultório. Neste artigo, ela dá seu ponto de vista sobre os desafios das mulheres na medicina. O texto e as opiniões incluídas neste conteúdo não refletem, necessariamente, a opinião da iClinic.
O Conselho Federal de Medicina divulgou recentemente que, em 20 anos, o número de mulheres que exercem a medicina no Brasil dobrou. No grupo de até 34 anos, as mulheres já são maioria, acompanhando um fenômeno global.
O maior acesso de mulheres à carreira médica é, indubitavelmente, uma vitória.
Contudo, apesar dos números mostrarem uma crescente na quantidade de ingressos femininos no ambiente médico, devemos ter em mente que até 1960, apenas cerca de 60 anos atrás, a medicina no Brasil era exercida majoritariamente por homens.
Ou seja, historicamente falando, essa mudança no perfil demográfico das faculdades de Medicina é recente, enquanto as mudanças necessárias para a adaptação do ambiente médico e cultural a essa nova organização, ocorrem de maneira mais lenta.
É isso que iremos abordar neste artigo. Boa leitura!
Os 4 principais desafios das mulheres na medicina
1. O acesso à graduação
A construção social da identidade pessoal, que começa na infância, não ocorre nas mesmas condições e formas para homens e mulheres.
Infelizmente, a educação feminina doméstica e escolar ocidental ainda favorece e, por vezes, até estimula a insegurança intelectual, emocional e financeira feminina.
Não raramente também, durante os anos escolares, no desenvolvimento feminino, há uma menor valorização de qualidades como destreza, habilidade manual ou inteligência espacial, que terminam por ter seu desenvolvimento pouco estimulado em relação aos seus pares masculinos.
E esses são atributos que, futuramente na vida feminina, são diferenciais em áreas médicas com procedimentos manuais, como as áreas cirúrgicas.
Além disso, outras características individuais consideradas favoráveis para cargos de poder, tais como personalidade “forte”, autocontrole, mente questionadora, capacidade de liderança e uma certa agressividade, são vistas como positivas quando presentes nos homens, mas como atributos estranhos à personalidade da mulher.
Nessa última situação, inclusive, chega a provocar dúvidas, para algumas pessoas, quanto à feminilidade da mulher, sendo essas características, consequentemente, reprimidas por pais, professores, colegas e até pela própria criança, que introjeta essa sombra negativa sobre tais atributos.
Para entender a influência da educação feminina nas suas decisões de carreira subsequentes, é importante refletir sobre como ocorre o processo de escolha da formação profissional de um sujeito.
Processo de escolha da formação profissional
À primeira vista, o processo de tomada de decisão quanto à trajetória educacional a ser seguida aparenta se basear em preferências e interesses pessoais.
Todavia, na realidade, essas escolhas decorrem de uma mistura entre as aspirações pessoais e expectativas individuais, influenciadas fortemente – e, muitas vezes, de maneira imperceptível – por estruturas sociais.
Essas estruturas nas quais o sujeito se insere, incluem a classe social, cultural e econômica, assim como as expectativas da própria sociedade em relação à etnia ou gênero de um indivíduo no âmbito do mercado de trabalho.
E essas ideias são embutidas na mente do jovem durante sua trajetória educacional dentro do contexto histórico e social em que o indivíduo se insere.
Ou seja, o contexto no qual uma pessoa se desenvolve e a idéia social dos papéis que supostamente são naturais a esse sujeito irão influenciar indiretamente nas escolhas que esse indivíduo irá optar, por exemplo, em relação a qual carreira escolher.
Resumidamente, a aparente ilusão de liberdade de escolha de um indivíduo está relacionada à posição que essa pessoa ocupa dentro de uma contexto histórico-étnico-gênero-social.
2. Durante a graduação
Embora, conforme falamos, os números levantados mostrem que o acesso e a permanência das mulheres no curso de medicina já não sejam mais formas tão significativas de discriminação de gênero, é ingênuo pensar que esse tipo de desigualdade não seja ainda perpetuado de outras maneiras veladas dentro do ambiente médico.
No contexto da educação de nível superior, como nas faculdades de medicina e residência médica, nem sempre as manifestações de poder se dão pela via óbvia da repressão.
Em seu artigo “Formação das mulheres nas escolas de medicina”, Rebeca Contrera Ávila salienta que é preciso notar a presença de toda uma rede de ensinamentos dentro do ambiente acadêmico que, de forma aparentemente inocente e até inconsciente, constrói identidades, práticas e reforça estereótipos.
É preciso estar atento a “gestos ‘tolerantes’ e (…) às concessões que mantêm determinados sujeitos e práticas em lugares e funções socialmente demarcados como ‘naturais’ a este ou àquele gênero”, atuando na manutenção da discriminação de gênero.
Iniciando já durante a graduação de medicina, estereótipos sexistas e discriminação de gênero impactam negativamente na formação das mulheres médicas.
Muitas vezes passando de forma inofensiva, alguns hinos de faculdades e periódicos estudantis com sátiras de ideologias machistas, objetificam mulheres e reduzem sua importância a papéis estereotipados, ajudando a perpetuar o preconceito de gênero.
Participação em núcleos acadêmicos
A facilidade de formação de núcleos compostos em sua maioria por homens em algumas instituições acadêmicas, como associações atléticas ou centros acadêmicos, favorece também, pela própria estrutura de formação desses grupos, a convivência com pensamentos uníssonos masculinos, ecoando comentários machistas presencial ou virtualmente.
A maior participação feminina recente em cargos de “poder” acadêmico dentro dessas instituições, tem diluído esse discurso, mas que ainda sim permanece aos ouvidos atentos.
Ainda segundo o artigo “Formação das mulheres nas escolas de medicina”, uma pesquisa realizada por Lempp e Seale com estudantes de uma escola de Medicina britânica constatou que:
“Apesar de os estudantes afirmarem não haver diferenças de gênero nas experiências vivenciadas durante a formação médica, os estudantes de ambos os sexos revelaram a existência de estereótipos de gênero estruturais através de suas próprias posturas e falas.
Por exemplo, a maioria dos estudantes entrevistados nessa pesquisa tem interiorizada a ideia de que a cirurgia é uma especialidade dominada por homens porque exige maior força e resistência física.
Ao mesmo tempo, dizem também que há uma série de qualidades que as mulheres trouxeram para a medicina e que algumas especialidades respondem melhor a elas, como Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia.”
A ideia de que algumas especialidades médicas seriam preferenciais para esse ou aquele gênero poderia ser explicada pelo fenômeno social da “permanência dentro da mudança e pela mudança”, explicado por Bourdieu, conforme reforça Ávila.
A autora esclarece que quando uma profissão (ou determinada posição profissional) se feminiza, ocorre paralelamente uma deserção por parte dos homens.
Isso porque, ao se tornar mais feminina, essa profissão passa também a ser menos valorizada social, econômica e intelectualmente, ou seja, passa a ser vista como inferior.
Esse fenômeno pode ser percebido em áreas de apelo estético como dermatologia e cirurgia plástica, ou áreas vistas tipicamente como femininas, como ginecologia e pediatria.
Já na área acadêmica, os estereótipos de gênero são recorrentemente repassados pelo próprio corpo docente, masculino e até feminino, que tiveram sua formação em épocas nas quais o preconceito de gênero era ainda mais arraigado na cultura médica do que atualmente.
Por desconhecerem outra maneira ou pela resistência em se atualizar, insistem em manter discursos retrógrados e influenciam escolhas de estudantes ainda jovens, em processo de formação identitária e profissional, e vulneráveis a opiniões de quem consideram mais experientes.
Em algumas situações, as estudantes são aconselhadas de tal maneira que muitas são levadas a pensar que nem todas as especialidades são adequadas para uma mulher (especialmente para uma mulher que é ou pretende ser mãe).
Durante os anos iniciais de formação, tais conselhos podem ser um fator determinante para o encaminhamento futuro de suas carreiras.
Ao alcançarem o final da graduação, as estudantes de medicina precisam passar por uma nova provação: a escolha da residência médica.
A presença masculina na profissão médica aumenta nas faixas etárias mais elevadas, atingindo o percentual máximo de 79% no grupo acima dos 70 anos.
O mesmo acontece conforme se sobe na hierarquia das especialidades médicas ou da área acadêmica.
Seja pelo fato de que antigamente havia menor presença feminina nas faculdades médicas, seja pela dificuldade que as mulheres enfrentam para ascender na carreira, essa desigualdade acaba por limitar o acesso de mulheres a muitos cargos de prestígio e melhor remuneração, muitas vezes alcançados apenas em idades mais avançadas.
A menor quantidade de modelos femininos mais velhos a serem seguidos pelas jovens médicas influencia na hora da escolha do acesso à residência médica, com uma menor quantidade de candidatas do gênero feminino em relação ao masculino optando, por exemplo, por carreiras cirúrgicas, áreas ainda com poucas mulheres em cargos de poder acadêmico, embora o interesse de ambos os sexos pela área pareça ser igual.
Assim, essa baixa representatividade feminina funciona como uma barreira sutil à ascensão das mulheres em ritmo de igualdade com os homens, reproduzindo espaços de formação demarcados pelo sexo, tendo em vista que medicina é uma das carreiras que ainda relaciona idade com experiência e competência, principalmente em ambientes acadêmicos.
Dessa maneira, perpetua-se a distância entre os gêneros, apesar das mudanças no acesso à medicina conquistadas.
3. Acesso à residência médica
Maternidade: é uma barreira?
A própria estrutura do processo de seleção para a residência, pós-graduação e carreira acadêmica pode atuar como instrumento de discriminação de gênero.
No processo de seleção da residência médica, que por si só é extremamente competitivo e exigente, posso dizer, por experiência própria, que já durante a entrevista somos questionadas por chefes de departamento ou outros membros da equipe de seleção, se desejamos ser mães ou temos risco de engravidar durante a residência médica.
Mulheres que fazem opção pela maternidade não são consideradas pelos professores e mentores como estudantes de alto potencial produtivo acadêmico e, em algumas residências médicas, provavelmente não passarão no exigente crivo do processo de seleção.
Desgosto em relação ao afastamento durante a licença maternidade de residentes médicas, que, diga-se de passagem é um direito, além de comentários de falso cunho biológico, como lentificação do raciocínio decorrente das alterações hormonais da gestação, são usados como justificativas não oficiais para a rejeição de mulheres que planejam a maternidade.
Ainda que não seja um critério legitimamente válido, a maternidade (e não a paternidade) torna-se o primeiro fator de corte no processo de seleção.
Apoiados em valores e hierarquias machistas, os processos de seleção utilizam estratégias que prejudicam as mulheres e reforçam os estereótipos de gênero.
Como consequência, receosas de serem subestimadas pelos examinadores ou por seus futuros orientadores e mentores, as mulheres adiam ao máximo a decisão pela maternidade.
O preço que se cobra que as mulheres paguem para ascender na carreira é extremamente elevado. Elas são indiretamente forçadas a escolher de uma forma que a maioria dos homens não é exigida a escolher.
Dessa maneira, muitas mulheres que têm desejo de ser mães, optam por renunciar à maternidade, temporária ou permanentemente, ou escolhem – de maneira consciente ou inconsciente – especialidades nas quais esse equilíbrio aparente ser mais fácil.
Em certas ocasiões, elas desistem de carreiras com formação excessivamente longa ou exigente, que muitas vezes são as de maior prestígio e remuneração, como as áreas cirúrgicas.
Cabe ressaltar aqui que, em muitos casos, esse crivo de seleção não é sequer percebido pelas próprias estudantes de medicina, que veem como algo natural optarem por carreiras com maior flexibilidade de horários.
Porém, deve-se refletir que esse pensamento, provavelmente, sequer ocorre para seus pares masculinos, sendo esse um importante exemplo de como ocorre o machismo estrutural na área médica.
Sem fornecer apoio ativo à maternidade, instituições de ensino desatualizadas têm atuado como agentes promotores de barreiras para a progressão das carreiras femininas.
A principal dessas barreiras tem sido a falta de acolhimento institucional para que as mulheres consigam combinar um longo e exigente processo de formação com a construção da família.
Quando não desestimula o acesso, a antecipação da dificuldade de equilibrar a maternidade com uma vida profissional demandante leva muitas mulheres a postergar a gestação para idades mais avançadas (e de maior risco para ela e o bebê) ou escolher entre maternidade ou ascensão na carreira médica.
A realidade é que o matrimônio e a maternidade ainda têm suas responsabilidades de entrega emocional, temporal, logística e até financeira – quando se lembra que a profissional autônoma não tem direito à remuneração na licença-maternidade – recaindo majoritariamente sobre o sexo feminino.
Associadas à completa falta de estrutura de suporte institucional, como ausência de creches ou salas de lactação em hospitais ou congressos, a estrutura educacional médica atua como mais um protagonista na perpetuação da desigualdade de gênero.
Modelos femininos
Novamente durante a residência médica, a escassa presença de mulheres acadêmicas em cargos de prestígio nas especialidades implica em menores chances de residentes mulheres conseguirem uma orientadora do sexo feminino.
A importância de modelos femininos como mentoras não deve ser subestimada.
Conselheiros podem ajudar ou prejudicar as carreiras de um estudante, e as mulheres poderão estar em desvantagem ao ficarem sob a orientação de um mentor que tenha preconceitos de gênero, além de estarem mais expostas a situações de assédio moral ou sexual.
A própria relação hierárquica implicada em estruturas de poder dentro do ambiente acadêmico, como ocorre entre orientadores homens e residentes mulheres, facilita a ocorrência desses assédios.
Ao mesmo tempo, esse degrau de poder torna mais difícil a denúncia desse tipo de abuso, por receio de represálias ou prejuízo na formação, o que não raramente ocorre no campo da medicina, pela minha vivência.
A falta de educação de residentes sobre como se portar em situações de abuso, assim como a ausência de uma rede de apoio e o receio de a denúncia não resultar em consequências efetivas, agrava ainda mais o cenário da subnotificação dos assédios morais e sexuais no campo médico.
Outra situação recorrente são mentores e orientadores de mentalidade machista, tanto homens como mulheres, que deixam de escolher estudantes femininas para serem suas orientandas ou as pressionam para evitar a maternidade durante a realização de uma pós-graduação, mestrado ou doutorado, por acreditarem que mulheres que têm filhos não darão conta de uma formação de longo prazo ou não serão capazes de satisfazer as exigências do campo de pesquisa.
4. Acesso ao mercado de trabalho
Quando, apesar de todos os percalços, as mulheres conseguem se formar como médicas e especialistas, elas encontram um novo desafio, que é a entrada no mercado de trabalho com estereótipos sexistas e determinações sociais que atribuem ao trabalho do homem um peso e valor maior do que o trabalho da mulher.
Segundo Pringle, o fenótipo masculino inspira 25% a mais de confiança do que o feminino.
Isso significa que, para qualquer cargo que se candidate, uma mulher precisa mostrar ser, pelo menos, 25% mais capacitada do que seu concorrente masculino para ter as mesmas chances de sucesso.
Ainda hoje, em ambiente hospitalar, muitas de nós, médicas, ainda somos confundidas com enfermeiras, uma vez que antigamente apenas homens poderiam ter o título de médico.
Outra situação que, na minha experiência, é muito sub-relatada no mercado de trabalho médico feminino, é a quantidade de assédios sofridos pelas médicas, seja por outros médicos, seja por pacientes.
O assédio por outros médicos vai ao encontro de uma estrutura social e cultural machista que ainda permanece no país e que penetra todas as formas de relação social, inclusive as de colegas de profissão.
Já o assédio sofrido por meio de pacientes encontra outro nível de complexidade.
A era digital facilitou a busca e o acesso a profissionais de todas as áreas de atuação, não sendo a medicina diferente.
Ademais, as próprias mídias sociais tornaram-se uma ferramenta imprescindível de marketing profissional: o médico se utiliza delas para marcar sua presença no mundo digital, obter pacientes e distribuir seu conhecimento.
Os pacientes, por sua vez, conseguem facilmente encontrar um profissional de seu interesse e obter dados objetivos acerca da formação educacional, locais de atendimento e meios de comunicação do médico.
O outro lado da moeda, no entanto, é que essa facilidade de acesso também favorece o assédio.
No meu caso, por exemplo, já fui vítima de situações como ser abordada em redes sociais por pacientes atendidos por mim em um serviço terceirizado recebendo mensagens de cunho não profissional, por exemplo, propondo encontros românticos.
Cabe ressaltar que área da Dermatologia, minha área de atuação, aborda o atendimento de queixas de pele, unhas, cabelos e mucosas e, por conseguinte, envolve o exame de todas as áreas do corpo para o diagnóstico preciso e proposta de tratamento, como é o caso das regiões genitais, em especial quando a queixa do paciente envolve essa área.
Alguns pacientes se utilizam dessa peculiaridade da área dermatológica para agendar consultas e realizar o assédio durante o atendimento médico, como já ocorreu comigo.
Durante o atendimento, esses assediadores muitas vezes realizam comentários inadequados acerca da aparência da médica, questionam sobre sua vida pessoal, ou utilizam-se de vocativos “carinhosos” ou estereotipados, levando a uma situação de constrangimento.
Recorrentemente também, realizam consultas frequentes com queixas genitais para que o exame da região genital seja feito repetidamente.
Durante o exame físico dermatológico – que envolve sempre observação e palpação da pele para notar alterações de textura, por exemplo – alguns pacientes masculinos chegam inclusive a apresentar ereção peniana e, em casos extremos, podem chegar a realizar masturbação.
Apesar de ser perceptível durante a consulta médica a inespecificidade das queixas, a ausência de alterações dermatológicas genitais ao exame físico ou a falta de evolução na melhora dos supostos quadros com o tratamento proposto, comumente as médicas não conseguem se desvencilhar de realizarem o atendimento desses pacientes.
Infelizmente, situações de assédio como essas em nossos locais de trabalho não são incomuns, principalmente no contexto de médicas recém-formadas. A grande maioria de nós ou já passou por isso, ou conhece alguém que esteve na situação.
Atuando em clínicas de terceiros, as médicas recém-formadas se encontram em uma posição delicada de, simultaneamente, não serem proprietárias dos meios de atendimento e não terem a proteção de direitos trabalhistas em casos de demissão.
Todo esse contexto inibe a recusa de atendimentos mesmo em situações de desconforto, por receio de serem desligadas do seu local de atendimento, aliado a uma ideologia social que não é diferente no ambiente médico, de que é necessário que a mulher (e vítima) justifique seu desconforto de maneira objetiva para solicitar o não-atendimento de um paciente, apesar do fato de que muitas dessas situações de assédio ocorrem no contexto de percepções comportamentais que são, por definição, subjetivas.
Resumindo, é preciso que se chegue a uma situação extrema para que a mulher e médica tenha argumentos para recusar um atendimento ao seu empregador.
Soma-se a isso o agravante de que muitas clínicas de atendimento de convênios médicos evitam recusar atendimento (não emergencial) a um paciente por receio de consequências legais e perda da associação com a empresa de convênios.
Na tentativa de contornar a situação, agendam o paciente para outro(a) profissional e, assim, perpetuam a impunidade de situações como essa e colocam sob risco uma nova médica.
Ainda dentro do contexto de assédio, vale ressaltar outro ponto de diferença entre os atendimentos médicos femininos e masculinos.
Consultórios médicos individuais, ao contrário de clínicas, geralmente contam apenas com o profissional e uma secretária, que não raramente também é do sexo feminino.
Por receio de uma maior vulnerabilidade, as médicas mulheres acabam buscando consultórios em prédios, ao invés de casas, para contar com uma camada extra de segurança na portaria, com obtenção do cadastro do paciente por exemplo.
Além disso, evita-se atendimentos de pacientes masculinos desconhecidos em horários avançados ao final do dia, nos quais, muitas vezes, a secretária que trabalha em regime CLT, pode não estar mais presente.
Essas são preocupações sobre as quais as médicas mulheres refletem na hora de decidir o local de trabalho, mas que muito provavelmente sequer passam pela mente masculina.
No meu próprio consultório, já me vi na situação de ter o agendamento de um assediador atendido por mim em outro serviço e que, novamente, me procurou após encontrar meu endereço na internet.
Nesses momentos, nós médicas nos vemos, muitas vezes, impelidas a realizar o atendimento por receio de sofrer agressão, nos colocando em posição de risco.
No meu caso, mesmo o fato de estar em um prédio não garantiria minha segurança.
Após meu relato do ocorrido à administração do prédio, fui informada pelo síndico de que não poderiam impedir a entrada ao edifício, caso o mesmo buscasse outra unidade do prédio que não a minha, apesar do fácil acesso entre as diferentes unidades.
O que fazer, então, em uma situação como essa? A verdade é que nós médicas somos completamente despreparadas para lidar com situações de abuso na área médica.
Não há nenhuma forma de orientação ou ensinamento, seja durante os muitos anos de formação – que em sua totalidade, contando a graduação, residência médica e subespecializações, somam mais de 10 anos – seja pelos conselhos regionais e nacionais de medicina.
A grande maioria das médicas mulheres simplesmente tenta afastar-se do assediador, sem gerar consequências legais para este.
Além disso, muitas de nós somos culpabilizadas por empregadores ou administradores dos edifícios por termos “permitido” o atendimento de assediadores, colocando sobre as vítimas a responsabilidade por serem assediadas, tal como ocorre em outros contextos de abuso.
Ao buscar auxílio profissional com outros médicos experientes na área de direitos médicos, fui orientada (por profissionais homens, cabe a ressalva) a apenas tentar desestimular o acesso do paciente ao meu consultório, me removendo de formas eletrônicas de acesso ou me tornando indisponível ao atendimento.
Ou seja, deveria prejudicar minha forma de publicidade mais eficiente para me poupar.
Trata-se de mais uma nova maneira de prejuízo da vítima para compensar o total despreparo da sociedade e instituições para lidar com acontecimentos assim.
A realização de um boletim de ocorrência de stalking (perseguição) – uma vitória recente, principalmente para vítimas femininas, sancionada apenas em abril de 2021 – foi desencorajada por conselhos de advogados pelo fato de que a única prova sobre os ocorridos seriam os prontuários médicos, que no caso são realizados pela própria médica, enfraquecendo sua força legal.
Percebe-se aqui uma sequência de falhas do sistema e da sociedade em proteger médicas vítimas de assédio no atendimento médico, reproduzindo de maneira similar o que ocorre com mulheres na sociedade de forma geral.
A triste verdade é que mulheres médicas encontram-se desamparadas em situação de assédio durante todo o seu trajeto profissional.
Além da já mencionada completa falta de abordagem sobre assédio nas instituições de ensino, as experiências negativas de muitas estudantes de medicina com casos de assédio no ambiente acadêmico, que são arquivados pelas próprias universidades, dificultam que se encontre uma solução.
A tudo isso somam-se entraves como o fato de a consulta médica ser realizada de formas individual e sigilosa, o prontuário médico ser produzido pela própria médica e a falta de apoio institucional por conselhos de medicina – que servem para fiscalizar apenas a atuação do médico, e não do paciente.
Conclusão
Percebe-se que, infelizmente, o simples (e ao mesmo tempo complexo) acesso de mulheres a áreas até então majoritariamente masculinas como a medicina são ganhos que, sozinhos, não são o suficiente para tornar os papéis masculinos e femininos igualitários e não devem esconder a fragilidade das conquistas e a persistência das desigualdades de gênero.
É preciso entender que ainda há segregações veladas em instituições de ensino, assim como um contexto social que continua atribuindo um peso e valor ao trabalho masculino, maior do que o feminino.
O reconhecimento público da capacidade intelectual e profissional das mulheres não foi acompanhado pelo abandono dos estereótipos de gênero.
O imaginário coletivo ainda atribui às mulheres características como incapacidade de lidar sob situações de pressão, descontrole emocional e histeria.
Chantagens, assédio e ridicularizações ainda são recorrentes no ambiente médico, sobretudo, quando são realizados verticalmente na hierarquia, ainda muito forte, do ambiente da graduação e residência médica.
Faltam ainda políticas institucionais, condições de formação, incentivos e requisitos de seleção para especialidades que sejam adaptadas à realidade feminina e à maternidade.
Algumas conquistas profissionais e culturais femininas continuam a provocar reação de surpresa na sociedade de maneira geral, enquanto a ausência de mulheres em posições de representatividade social não causa nenhum espanto.
Um exemplo disso, é a Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, ter sua primeira diretora mulher tomando posse apenas em 2022, após 110 anos de história da faculdade.
É pensando nisso que essas novas formas de hierarquização de gênero no interior da medicina precisam ser entendidas: considerando não somente a fotografia estática dos estudos sobre divisão sexual do trabalho, mas também a permanência das desigualdades nas maneiras que indivíduos de sexos diferentes constroem suas perspectivas quanto ao futuro profissional e seus estudos superiores e, ao fazerem isso, transportam para esse novo nível de ensino as desigualdades sociais incorporadas historicamente.
Discursos misóginos que divulgam que mulheres se utilizam da sua condição feminina para justificar dificuldades pessoais de ascensão profissional, ou para obter prestígio, são no mínimo simplistas e míopes.
Em datas comemorativas como o Dia das Mulheres, Dia dos Médicos ou Dia das Mães, mais importante do que o repetido discurso sobre como amamos ser mulheres, médicas ou mães, nós, mulheres, e também os homens, devemos analisar o panorama do que significa ser mulher e profissional atualmente, como conseguimos chegar até aqui, quais foram as batalhas vencidas, e, mais importante, perceber que não alcançamos ainda um patamar de igualdade profissional aos homens, e talvez nunca alcancemos. Mas que não paremos de tentar.
Referências
Em 20 anos, dobra o número de mulheres que exercem a medicina no Brasil. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/em-20-anos-dobra-o-numero-de-mulheres-que-exercem-a-medicina-no-brasil/
Ávila RC. Formação das mulheres nas escolas de medicina. Rev bras educ med [Internet]. 2014Jan;38(Rev. bras. educ. med., 2014 38(1)):142–9. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0100-55022014000100019
Franco T, Santos EG dos. Mulheres e cirurgiãs. Rev Col Bras Cir [Internet]. 2010Jan;37(Rev. Col. Bras. Cir., 2010 37(1)):072–7. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0100-69912010000100015